quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011


A Bienal de Arte de São Paulo, maior evento do gênero na América e um dos mais antigos no mundo (juntamente com a Bienal de Veneza) passou por recentes crises ligadas à má admnistração do evento e à própria crise da arte contemporânea. Estes problemas se refletiram na penúltima bienal, na qual ocorreram eventos como a pichação do edifício por um grupo de artistas/ativistas. Havia nesta bienal um pavimento vazio, resposta da curadoria para a crise, e justamente aí ocorreu a ação polêmica. Os autores reivindicavam a renovação do evento e uma posição politicamente mais clara da arte[1]. Em tempo, o pavimento vazio acabou dando à bienal de 2008 o apelido pejorativo de Bienal do Vazio...

A curadoria da bienal de 2010 parece ter entendido melhor a mensagem, a julgar pelos trabalhos atualmente em exposição no Palácio das Artes em Belo Horizonte. Belo Horizonte?! Mas não estamos falando da bienal de São Paulo? Pois é, a proposta de levar uma seleção do que foi exposto em 2010 para diversas capitais do país é parte da necessária revisão de proposta da bienal. O eixo curatorial foi o da arte/política em diversos graus de relação que tais termos possam suscitar. A resposta interessante é talvez a única possível diante dos problemas enfrentados pela arte, pela própria bienal e pelo mundo convulsivo em que vivemos hoje. Mundo no qual, talvez, sempre tenhamos vivido, o recorte atual serve para mostrar que os trabalhos falam dos problemas de hoje, espaço de tempo onde se inserem seus questionamentos e sua propostas.

Belo Horizonte, primeira cidade visitada pelas obras contundentes recebe-as em um momento muito oportuno. Além das obras mais recentes foi feito um recorte histórico, no qual predominam obras dos anos 60 e 70, algumas delas incluídas na polêmica exposição de abertura do Palácio das Artes, mesmo centro cultural em que estão expostas agora. Na mesma época o Brasil vivia uma ditadura militar e o pós guerra na Europa e nos Estados Unidos trazia enorme efervescência político-cultural. São obras germinais para o contexto sócio-cultural do país e muitos dos trabalhos de jovens artistas contemporâneos presentes na exposição trazem explícita referência ao mesmo período histórico. Época de contestação dos limites entre democracia e autoritarismo, é possível fazer um paralelo perturbador com a realidade atual em que o prefeito eleito de Belo Horizonte age como um autoritário ditador, e não é o único ao redor do mundo...

Contudo, chama a atenção um trabalho mais contemporâneo e que não se utiliza de sangue, suor ou lágrimas – ao menos não de forma tão óbvia quanto a maioria: -Trata-se do "Centro de Pesquisa da Normalidade Brasileira", de Jimmie Durham USA
Neste trabalho o artista simplesmente coloca em uma sala uma série de objetos, cortes de jornais, revistas, fotografias e trechos de tratados de sociologia brasileiros, em um resultado desconcertante. Neste verdadeiro museu de costumes o que se desenha não é um paraíso tropical, mas um lugar rico em todo tipo de violência. Não falo da violência contra o turista gringo assaltado nas praias do Rio, mas sim da violência cotidiana de 500 anos num país que insiste em usar o sangue de seu próprio povo como lubrificante para a própria economia.  O olhar estrangeiro permitiu ao artista salientar detalhes que subvertem algumas noções históricas correntes no Brasil, especialmente o papel de dominados e dominadores. A montagem permite ver como os brasileiros não são apenas vítimas do domínio imperialista europeu ou estadunidense. Somos também algozes de nós mesmos e nos recusamos a reconhecer nossa própria nação. Frequentemente imitamos de modo grotesco os povos que declaramos algumas vezes como exploradores, e outras como salvadores. Tememos uma barbárie que ousa enfrentar o calor dos trópicos com a verdade da nudez. Alguns ingênuos poderiam dizer que o artista foi hipócrita, ele que vem de um dos países mais violentos do planeta, ou que ele não entende a cultura local. Eu como brasileiro não teria dificuldade em usar da “antropofagia brasileira”[2] para dizer que a visão dele é válida, interessante e por isso mesmo deve ser ingerida por nós. Aí mesmo se insere a potência da obra, ela não é ilegível para o “outro”, ela mostra que somos o outro. Os ocidentais só identificam esse outro pela diferença, algumas vezes encaixando-o na expressão macia do multiculturalismo. Não se lembra que multiculturalismo é uma expressão que já invoca em si um preconceito ao distanciar distintos grupos humanos, culturas diferentes. Já dizia o poeta romano Terêncio “eu sou homem e nada que é humano me é estranho”. Não é sem razão que o objeto que mais me impressionou da sala de Jimmie Durham, colocado na parede em posição de destaque, é um espelho.


[1] A resposta dos organizadores da “Bienal do Vazio” aos manifestantes foi chamar a polícia e processá-los, o que salientou a necessidade de uma revisão da relação entre o evento e a cidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

comente sem moderação