terça-feira, 29 de março de 2011

O Minério Radioativo do Amazonas e as Usinas Atômicas Japonesas (publicado originalmente em http://urubui.blogspot.com/)


O Minério Radioativo do Amazonas e as Usinas Atômicas Japonesas

Presidente Figueiredo, Amazonas, 1992: estávamos construindo a Casa da Cultura do Urubuí. Doroti, eu e as crianças ajudávamos na cobertura de cavaco. Há nossa frente, pela BR-174, roncavam caminhões carregados de minério procedentes da mina do Pitinga. Oficialmente as carretas levavam apenas cassiterita ou estanho. Em verdade, carregavam diversos minérios estratégicos, todos bem mais caros do que o estanho: ítrio, tântalo, colúmbio, urânio, criolita, ouro. A BR-174 tornou-se mais uma “veia aberta da America Latina”. O diretor do setor mineral do Mercado Comum Europeu garantia em reunião em Duisburg / Alemanha / 1991 que todo o minério do Pitinga estava sendo vendido no mercado negro, confirmando conclusão a que o geógrafo e pesquisador da UFAM, José Aldemir de Oliveira chegou em sua tese de doutorado intitulada: “Cidades na Selva”.
A área da mina do Pitinga, 526.000 hectares, foi invadida pela Paranapanema em 1979 e roubada pelo Governo Figueiredo do povo indígena Waimiri-Atroari em 1981. Da maracutaia nasceu o nome de batismo de nosso município: Presidente Figueiredo.

Num daqueles dias, do alto da Casa da Cultura do Urubuí, estranhamos a grande quantidade de carretas que vinha em sentido contrário, de Manaus para Pitinga, também carregadas de minério. Informei-me sobre o por que daquilo. Li conscientemente os jornais e revistas, principalmente as noticias que tinham referencia ao Japão, pois duas firmas japonesas, a Marubini e o Industrial Bank of Japan, controlavam então a Mina do Pitinga. E sabíamos que lavravam ali minério radioativo. Por outro lado, o parlamento japonês exigia das empresas que importavam material radioativo, um destino, fora do Japão, para o lixo radioativo. Os noticiários sobre navios que percorriam os mares contendo lixo atômico, sem saber que destino dar também eram freqüentes. E aqui, próximo ao aeroporto de Manaus, ocorreram dois acidentes aéreos e corriam boatos de que a causa seria minério radioativo, estocado pela Paranapanema nas imediações do aeroporto que interferia nos equipamentos dos aviões.

Tudo isso me fez levantar a hipótese e denunciar que as carretas que seguiam carregadas rumo à mina do Pitinga levavam lixo radioativo. A movimentação dessas carretas durou aproximadamente 4 meses. Falava-se que teriam transportado 5.000 toneladas do estranho material para dentro do nosso município.

A imprensa publicou a minha denúncia, mas em resposta entrevistava apenas geólogos e autoridades conhecidamente comprometidos com as empresas de mineração que obviamente negavam tudo. Nunca foi feita uma investigação séria sobre o assunto. Também não me processaram por calúnia. E o problema continua a pairar sobre os índios Waimiri-Atroari e a população local como uma bomba-relógio até hoje.

Queixas de trabalhadores da mina do Pitinga sobre males estranhos que sentem no corpo; fraquezas gerais; doenças sem causa aparente... E funcionários da empresa começaram a se abrir conosco sobre estes problemas. Um deles, guarda do canil da firma, trabalhava há poucos metros do local onde o lixo foi enterrado. Sempre que nos visitava se queixava de dores no corpo até que decidiu sair da mina, já sem condições de continuar o seu trabalho. Hoje mora em Brasília, onde procura em vão por justiça. Outro jovem robusto ficava ofegante ao subir a escada de 15 degraus da Casa da Cultura do Urubuí. Há poucos meses um vereador falou da proliferação do câncer no município. Muitos manifestam os problemas que sentem, outros guardam segredo com medo de sofrerem represálias da firma.

E lá no Japão milhões de inocentes pagam hoje pela maldição que donos de empresas japonesas e governantes corruptos, de lá e de cá, armaram sobre suas cabeças. Naquele tempo, os jornais publicavam protestos de ecologistas contra o transporte de plutônio, material altamente radioativo que o navio japonês Akatsuki Maru transportava da França para o Japão, cujo roteiro foi mantido em sigilo absoluto (ver Revista Veja 11-11-1992: “Chernobyl Flutuante”). É preciso animar a juventude a reagir em tempo contra quem ameaça o futuro da vida na terra; contra quem constrói monstros radioativos ou usinas atômicas sob controle de poucos; contra quem alastra sempre mais as metrópoles comandadas por leis escritas que abafam as consciências; contra a construção sem controle e sem limites de fábricas de carros e de plásticos; contra quem cobre a mãe-terra de asfalto e cimento; contra agro-negociantes que liquidam a biodiversidade em grandes extensões e envenenam a terra; contra os governantes que constroem grandes barragens para hidrelétricas passando por cima de povos e comunidades; contra quem negocia as florestas da Amazônia com exportadores de madeira.

Respeito e carinho para com a diversidade da vida que cobre a mãe-terra, enriquecida pela ação criadora das pessoas podem transformar esse paradigma hoje reinante em mesas fartas e comunidades sorridentes.


Casa da Cultura do Urubuí /Amazonas, 25 de março de 2011.


Egydio Schwade

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011


A Bienal de Arte de São Paulo, maior evento do gênero na América e um dos mais antigos no mundo (juntamente com a Bienal de Veneza) passou por recentes crises ligadas à má admnistração do evento e à própria crise da arte contemporânea. Estes problemas se refletiram na penúltima bienal, na qual ocorreram eventos como a pichação do edifício por um grupo de artistas/ativistas. Havia nesta bienal um pavimento vazio, resposta da curadoria para a crise, e justamente aí ocorreu a ação polêmica. Os autores reivindicavam a renovação do evento e uma posição politicamente mais clara da arte[1]. Em tempo, o pavimento vazio acabou dando à bienal de 2008 o apelido pejorativo de Bienal do Vazio...

A curadoria da bienal de 2010 parece ter entendido melhor a mensagem, a julgar pelos trabalhos atualmente em exposição no Palácio das Artes em Belo Horizonte. Belo Horizonte?! Mas não estamos falando da bienal de São Paulo? Pois é, a proposta de levar uma seleção do que foi exposto em 2010 para diversas capitais do país é parte da necessária revisão de proposta da bienal. O eixo curatorial foi o da arte/política em diversos graus de relação que tais termos possam suscitar. A resposta interessante é talvez a única possível diante dos problemas enfrentados pela arte, pela própria bienal e pelo mundo convulsivo em que vivemos hoje. Mundo no qual, talvez, sempre tenhamos vivido, o recorte atual serve para mostrar que os trabalhos falam dos problemas de hoje, espaço de tempo onde se inserem seus questionamentos e sua propostas.

Belo Horizonte, primeira cidade visitada pelas obras contundentes recebe-as em um momento muito oportuno. Além das obras mais recentes foi feito um recorte histórico, no qual predominam obras dos anos 60 e 70, algumas delas incluídas na polêmica exposição de abertura do Palácio das Artes, mesmo centro cultural em que estão expostas agora. Na mesma época o Brasil vivia uma ditadura militar e o pós guerra na Europa e nos Estados Unidos trazia enorme efervescência político-cultural. São obras germinais para o contexto sócio-cultural do país e muitos dos trabalhos de jovens artistas contemporâneos presentes na exposição trazem explícita referência ao mesmo período histórico. Época de contestação dos limites entre democracia e autoritarismo, é possível fazer um paralelo perturbador com a realidade atual em que o prefeito eleito de Belo Horizonte age como um autoritário ditador, e não é o único ao redor do mundo...

Contudo, chama a atenção um trabalho mais contemporâneo e que não se utiliza de sangue, suor ou lágrimas – ao menos não de forma tão óbvia quanto a maioria: -Trata-se do "Centro de Pesquisa da Normalidade Brasileira", de Jimmie Durham USA
Neste trabalho o artista simplesmente coloca em uma sala uma série de objetos, cortes de jornais, revistas, fotografias e trechos de tratados de sociologia brasileiros, em um resultado desconcertante. Neste verdadeiro museu de costumes o que se desenha não é um paraíso tropical, mas um lugar rico em todo tipo de violência. Não falo da violência contra o turista gringo assaltado nas praias do Rio, mas sim da violência cotidiana de 500 anos num país que insiste em usar o sangue de seu próprio povo como lubrificante para a própria economia.  O olhar estrangeiro permitiu ao artista salientar detalhes que subvertem algumas noções históricas correntes no Brasil, especialmente o papel de dominados e dominadores. A montagem permite ver como os brasileiros não são apenas vítimas do domínio imperialista europeu ou estadunidense. Somos também algozes de nós mesmos e nos recusamos a reconhecer nossa própria nação. Frequentemente imitamos de modo grotesco os povos que declaramos algumas vezes como exploradores, e outras como salvadores. Tememos uma barbárie que ousa enfrentar o calor dos trópicos com a verdade da nudez. Alguns ingênuos poderiam dizer que o artista foi hipócrita, ele que vem de um dos países mais violentos do planeta, ou que ele não entende a cultura local. Eu como brasileiro não teria dificuldade em usar da “antropofagia brasileira”[2] para dizer que a visão dele é válida, interessante e por isso mesmo deve ser ingerida por nós. Aí mesmo se insere a potência da obra, ela não é ilegível para o “outro”, ela mostra que somos o outro. Os ocidentais só identificam esse outro pela diferença, algumas vezes encaixando-o na expressão macia do multiculturalismo. Não se lembra que multiculturalismo é uma expressão que já invoca em si um preconceito ao distanciar distintos grupos humanos, culturas diferentes. Já dizia o poeta romano Terêncio “eu sou homem e nada que é humano me é estranho”. Não é sem razão que o objeto que mais me impressionou da sala de Jimmie Durham, colocado na parede em posição de destaque, é um espelho.


[1] A resposta dos organizadores da “Bienal do Vazio” aos manifestantes foi chamar a polícia e processá-los, o que salientou a necessidade de uma revisão da relação entre o evento e a cidade.