domingo, 20 de junho de 2010

COISAS QUE POSSUEM MENTE


 razão de todas as razões?


luciano carlos cunha - 09/06/2010 


"você já se perguntou o que faz com que alguém seja vendido?





é claro. todos nós vivemos num mundo onde estamos rodeados o tempo todo por coisas que são vendidas. as coisas vendidas são chamadas mercadorias. nascemos e vivemos tão acostumados com isso que talvez nunca tenhamos parado para pensar para que serve o conceito de mercadoria.






bom. para começar, uma mercadoria é um item de propriedade, e como tal, ela tem um dono, um proprietário. mas, vamos lembrar de onde iniciamos a questão: "o que faz com que alguém seja vendido?". uma mercadoria só é vendida por um preço, um valor. e uma mercadoria só é mercadoria por ter um valor que está fora dela. os outros dão esse valor. dependendo do quanto a mercadoria favoreça aos interesses do seu proprietário, ela será mais ou menos valorizada. por definição, um item de propriedade é algo que só tem valor instrumental, condicional, extrínseco. é por isso também que uma mercadoria é chamada uma coisa. compreendemos bem quando dizemos isso de um relógio ou de uma laranja. nem um relógio nem uma laranja conseguem ver valor em sua própria existência, porque falta-lhes uma mente. assim, os donos de relógios e laranjas podem fazer o que bem entenderem com seus itens de propriedade (vender, dar, trocar e até mesmo destruir), pois esses itens não podem sofrer um mal1










até aí parece tudo muito simples. mas, a coisa fica intrigante quando perguntamos porque é que alguns seres que claramente possuem uma mente são vendidos. se são vendidos, é porque são considerados coisas - o comprador tem o direito de propriedade sobre a coisa, e pode fazer com ela o que bem entender. aqueles seres vivos que separam-se de sua fonte de provimento ao nascerem precisam da mente para moverem-se com segurança no ambiente2. é por isso que os chamamos animais, pois são animados (dotados de movimento por ação própria - diferentemente por exemplo, de um cata-ventos, que só pode mover-se por forças externas). e é claro, seres humanos também estão incluídos nessa categoria de seres animados. 




um centro de testes cosméticos nos EUA



a nossa busca está cada vez mais intrigante porque, claramente vemos que em nossa sociedade, alguns animais são vendidos e com relação a outros, achamos repugnante a idéia de vendê-los. Se quisermos sustentar firmemente nossa posição, para não sermos acusados de irracionalidade, precisamos demonstrar alguma diferença que exista entre os animais que podem ser vendidos e os que não podem. uma diferença que diga que alguns animais devem ser agrupados junto com relógios e laranjas e que outros animais são tão diferentes dos primeiros que devem ser colocados em um grupo separado. 






podemos iniciar nossa análise com relação aos seres humanos. há algum tempo atrás (e não faz muito tempo), humanos de pele negra eram considerados itens de propriedade dos humanos de pele branca. também as mulheres, já foram consideradas itens de propriedade dos homens. hoje em dia, achamos repugnante a idéia de que um ser humano possa ser vendido. a noção de que cada um de nós possui uma existência psicológica (e não meramente biológica como uma laranja, por exemplo) faz nos enxergarmos como possuindo o direito de não sermos utilizados como se fôssemos uma mercadoria, uma fonte renovável, um modelo de testes, como se só tivéssemos valor enquanto servíssemos aos interesses dos outros, enfim, como se fôssemos meros meios para fins de outros3. é por esse motivo que consideramos a escravidão como algo repugnante: diferentemente de laranjas ou relógios, nos importamos com o que acontece conosco, e podemos ser atingidos maleficamente por alguma ação ou omissão de terceiros. por possuirmos um bem-próprio e nos importarmos com o que acontece conosco, nosso valor é inerente4, e não instrumental. sentimos que nossa vida, integridade física e liberdade de movimento não têm preço. elas não podem ser compradas. 

tratar um indivíduo que possui uma mente como se fosse uma mercadoria é rebaixá-lo ao estatuto de coisa, é mostrar desrespeito pelos seu valor inerente e seus interesses. quando se trata de seres humanos, nós concordamos prontamente com todos esses princípios. mas, se somos realmente racionais, precisamos então explicar porque deveria ser diferente com relação a membros de outras espécies. em suma, por que respeitar um interesse de não ser usado como uma coisa, de não ser escravizado, em um ser de nossa espécie, e não no de outra? o que nos torna tão especiais? 

alguns dizem: é porque humanos são de nossa espécie. mas isso é como dizer que "humanos são humanos", e isso já sabemos. queremos saber o que torna todos os humanos tão especiais. muitos apontam a capacidade para a razão plena. mas assim estariam excluídos nossos bebês, as crianças muito pequenas, os humanos com graves lesões cerebrais, e os idosos senis. além disso, muitos animais não-humanos possuem níveis de raciocínio muito acima do deles. idosos senis podem já ter tido a razão desenvolvida um dia e bebês saudáveis podem ainda vir a desenvolvê-la, mas certos humanos passarão a vida inteira no mesmo estado (de não ter a posse plena da razão mas poder desfrutar de sua vida prazerosamente) e nem por isso os utilizamos como se fossem nossos recursos. resumindo, não há como traçar uma linha divisória com base em capacidades cognitivas, que coloque todos os humanos acima da linha e todos os não-humanos abaixo5

as tentativas do parágrafo anterior de apontar uma diferença entre humanos e não-humanos não foram bem-sucedidas porque tiravam uma conclusão que não tinha a ver com o assunto das premissas. as premissas diziam respeito a alguém por esse alguém ter o interesse em não ser usado como se fosse uma coisa, e a capacidade para a razão plena nada tem a ver com isso. para sofrer um mal, basta ser senciente (possuir a capacidade de sofrer/ desfrutar da vida). nisso, nos igualamos aos outros animais, pois somos dotados de mente. se não conseguimos apontar uma diferença moralmente relevante entre humanos e não-humanos que justifique a diferença no tratamento, é sinal de que nós, que nos auto-proclamamos racionais, estamos embasados num preconceito irracional, de aparências: o especismo6, (assim como o racismo e o sexismo). se não há mérito ou demérito por alguém ter nascido com este ou aquele formato de corpo (raça, sexo ou espécie), pois, não resulta de investimento pessoal7(qualquer um de nós poderia ter nascido com rabo, patas e bico), como usar essas características para justificar usar o outro como se fosse uma coisa? dessa forma, se somos racionais, precisamos estender aos não-humanos o mesmo direito moral básico8 de não ser usado como mero meio para fins de outros (por exemplo, como um item de propriedade), seja para qual fim for: alimentação, experimentos, vestimenta, entretenimento. e não importa se essas práticas são feitas sem dor ou não, com morte ou não: todas elas violam o princípio básico de que seres com uma mente não são coisas. 



ainda há outra questão intrigante. algumas pessoas defendem que é errado escravizar, torturar, matar, vender seres humanos e certos seres não-humanos (como cachorros ou gatos), mas não vêem nada de errado em fazer isso com galinhas, bois, vacas, porcos, etc. essa diferenciação é ainda mais difícil de entender, e não pode ser explicada a não ser por um outro preconceito semelhante ao primeiro tipo de especismo (o elitista, que coloca os seres humanos como uma elite): o especismo eletivo9 (onde se escolhe uma espécie para respeitar enquanto se continua a fazer uso de todas as outras). isso só pode ser explicado através de uma preferência sentimental que alguns tem por certos formatos de corpo. não haveria problema algum com essa preferência se as pessoas não pensassem que o respeito que elas devem se mede pela quantidade de amor que elas sentem. amar é opção, respeitar é dever10. e o respeito depende apenas das características do paciente da ação (se este pode ou não sofrer um mal), e não de sensações subjetivas na mente do agente (porque o paciente pode continuar a sofrer o mal, quer o amemos, quer o odiemos). 


assim sendo, a única posição coerente, com relação ao que estávamos investigando sobre o conceito de propriedade é: separarmos de um lado, as coisas (sem mente) que podem ser itens de propriedade e de outro, os indivíduos (que passam a ter o direito de não serem usados). com isso, necessitamos da abolição11 do uso de animais (tanto humanos quanto não humanos) enquanto itens de propriedade de seres humanos, não meramente sua regulamentação (pois nenhum defensor sério dos direitos humanos defende a regulamentação do estupro), simplesmente porque regulamentar a escravidão é torná-la mais forte e mais bem-vista aos olhos do público."




Notas
1 Cf. Gary L. FRANCIONE. Introduction to Animal Rights: Your Child or the Dog? - Philadelphia: Temple University Press, 2000, capítulo 3.
2 Sobre essa definição de animal, ver Arthur SCHOPENHAUER. O Mundo Como Vontade e Como Representação. São Paulo, Unesp, 2005, p. 214-215.
3 Cf. Tom REGAN. The Case for Animal Rights. In: BAIRD, Robert M.; ROSEMBAUM, Stuart E. (Eds.) Animal Experimentation: The Moral Issues. New York: Amherst, 1991, p. 85.
4 Id, p. 84.
5 Cf. Peter SINGER. The Significance of Animal Suffering. In: BAIRD, Rober M. & ROSEMBAUM, Stuart E. (Eds.) Animal Experimentation: The Moral Issues. Amherst, NY: Prometheus Books, 1991, p. 57.
6 Cf. Richard D. RYDER. Speciesism. In: ________. Victims of Science: the use of animals inresearch [1975]. Revised edition 1983. London: Centaur Press; National Anti-Vivisection Society Limited, 1983, p. 5.
7 Cf. FELIPE, Sônia T. . Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt. Revista Brasileira de Direito Animal, v. 1, 2006, p. 219.
8 Cf. Gary L. FRANCIONE. Introduction to Animal Rights: Your Child or the Dog? - Philadelphia: Temple University Press, 2000, p. 92-102.

9 Os termos especismo elitista e especismo eletivo são utilizados pela filósofa Sônia T. FELIPE. Ver entrevista em http://www.pensataanimal.net/index.php?option=com_content&view=article&id=66:




10 Agradeço a sugestão dessa frase a Maurício Varallo.
11 Cf. Tom REGAN. The Case for Animal Rights. In: BAIRD, Robert M.; ROSEMBAUM, Stuart E. (Eds.) Animal Experimentation: The Moral Issues. New York: Amherst, 1991, p. 77.

Referências






FELIPE, Sônia T. . Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt. Revista Brasileira de Direito Animal, v. 1, p. 207-230, 2006.

FRANCIONE, Gary L. Introduction to Animal Rights: Your Child or the Dog? - Philadelphia: Temple University Press, 2000.

REGAN, Tom. The Case for Animal Rights. In: BAIRD, Robert M.; ROSEMBAUM, Stuart E. (Eds.) Animal Experimentation: The Moral Issues. New York: Amherst, 1991, p. 77-88.

RYDER, Richard D. Speciesism. In: ________. Victms of Science: the use of animals in research [1975]. Revised edition 1983. London: Centaur Press; National Anti-Vivisection Society Limited, 1983, p. 1-14

SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Como Representação. São Paulo, Unesp, 2005


SINGER, Peter. The Significance of Animal Suffering. In: BAIRD, Rober M. & ROSEMBAUM, Stuart E. (Eds.) Animal Experimentation: The Moral Issues. Amherst, NY: Prometheus Books, 1991, pp 57-65.










Luciano Carlos Cunha - luciano@pensataanimal.net
Mestre em Ética pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), licenciado em Educação Artística com habilitação em música pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e colaborador da revista Pensata Animal.

terça-feira, 8 de junho de 2010

as rosas não falam
 

memento mori - encontrado nas ruínas de pompéia


em homenagem aos 200 anos de independência de nuestros hermanos argentinos e diante do chocante ataque que assistimos contra um navio de ajuda humanitária na palestina resolvi falar sobre temas profundos, duros, difíceis para leitores e mesmo para mim. 

voltei há um mês da terra do alfajor e foi a terceira viagem que fui pra lá em menos de um ano. é impossível não ficar fascinado e intrigado pela decadende/maravilhosa buenos aires, e seu povo idem. marcados por uma ditadura que matou mais de trinta mil pessoas ao que parece a argentina segue sem se conciliar consigo mesma, a política toma uma trajetória em que todos tentam destruir todos. segundo luis fanlo, sociólogo da universidade de buenos aires (uba) e grande estudioso de temas como argentinidade e brasilidade - que nem ele sabe se existem - o argentino de hoje é um povo amargo, individualista, pouco aberto a autocrítica ainda que extremamente crítico de tudo que lhe é estranho. o discurso violento se reflete em todos os lugares, desde as brigas na esfera política nacional até as frases cotidianas. a indisposição à visão do outro, o modo ritualístico de encarar cada gesto é difícil de compreender aos nossos olhos brasileiros, mas por vezes resulta em semelhanças como o desrespeito a acordos e leis. caminhos opostos que chegam ao mesmo ponto, como dizem os chineses: tudo que é extremo se torna o seu contrário.


sobre o interessante luis fanlo

nós aqui na terra dos papagaios por tradição somos um povo que evita rupturas, revoluções. não que o passado seja isento de sangue, mas comparativamente aos hermanos a coisa sempre foi mais, digamos, enxuta. o lado negativo? é difícil no nosso caso observar uma política partidária coerente e todos se vêem na obrigação de perdoar a todos por todos os erros. claro, somos um país em fase de transformação intensa e parece que para melhor. boa oportunidade de sair do comportamento infantil, da mania de esperar sempre a benevolência dos outros e de pensar que isso é praticamente uma regra do cosmos. segundo sérgio buarque de holanda o nosso informalismo e pouco apreço por símbolos muitas vezes parece aos olhos extrangeiros desrespeitoso. aqui o abandono das leis se dá não por uma exacerbação do indivíduo, mas pela transformação de toda a estrutura social em uma forma de intimidade, de relação pessoal. este brasileiro seria antes de tudo um homem "cordial" entendendo-se a expressão cordial menos por uma acepção cortesã e mais por sua etimologia relacionada à palavra latina cordis, ou seja coração. o coração ainda é o grande motor da ação no brasil e por isso somos enormemente apegados à familia mesmo depois da vida adulta, por isso é tão difícil definir relações profissionais, distinguir noções de público e privado, aqui há apenas o amigo ou desconhecido. por tudo isso a própria ideia da construção de uma democracia liberal tem qualquer coisa de exótico. por outro lado talvez seja esta abertura a tudo que vem de fora, ainda que com todos os seus problemas, que explique o atual desenvolvimento do país, mas não me arrisco a dizer para onde estamos caminhando. sem duvida nos falta um pouco da noção de individuo que os argentinos possuem para que olhemos um pouco para dentro, mas como chegar a um ponto de equilibrio sem perder o que possuímos de bom? eu é que não sei.

sobre nosso querido sérgio buarque de holanda, que não é apenas o pai de chico buarque

finalmente tenho que comentar o evento mais recente do conflito israel/palestina, que me deixou um tanto perplexo, ainda que eu saiba do que a humanidade é capaz. falo aqui do ataque de tropas de israel a um navio  em missão de ajuda humanitária que se encaminhava para a palestina. os povos, assim como os indivíduos têm seus códigos e sua história. não raro ocorre de povos deveras diferentes, deveras semelhantes, adentrarem em conflitos que em certo momento ninguém sabe como começaram. são como irmãos brigando por um brinquedo, em dado momento acabam se esquecendo do tal brinquedo, mas por vezes se tornam inimigos pelo resto de suas vidas e desconhecem a razão(!?) de tamanha antipatia. brasil e argentina se chocam culturalmente e  se atraem por essa mesma razão, discutem sobre futebol mas no fundo não é sobre futebol. nesse campo sobre o qual conheço muito pouco parece que cada um dos países reflete sua imagem, seu modus operandi. israel e palestina por sua vez têm um conflito político mascarado de conflito étnico cheio de dores, perdas e justificativas dos dois lados. cabe a nós como humanos vencermos nossa resistência pessoal, nossos hábitos incoscientes, e como indivíduos de pensamento liberto nos abrirmos ao esforço pela compreensão do outro, de seu contexto e sua posição. trata-se de relevar erros do passado por um bem comum com base na mais incrível capacidade humana, a individual capacidade de mudar de ideia observando o ambiente. os seres capazes das coisas mais abomináveis são os seres capazes de fazer arte, de criar noções de ética. para mim esta ética é o mais preciso oposto da violência.

fronteira eua / mexico


sobre o ataque ao comboio humanitário
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2010/06/472495.shtml

a mobilidade das pessoas através das fronteiras é um possível antídoto para superação de preconceitos e estabalecimento de novos laços. não é construindo muros e policiando céus e mares que israel conseguirá a paz. creio que essa é talvez a grande lição que os colonizadores portugueses nos deixaram pois foi incentivando tais laços, inclusive de parentesco, que eles conquistaram meio mundo no século XVI. talvez seja esse o segredo da enorme capacidade de absorção que a cultura brasileira possui com relação aos extrangeiros. as mesmas bases culturais que produzem o vício produzem a virtude, mantenhamos a segunda.

espero enfim que todos os desafortunados que lêem esse blog desconsiderem as citações e comparações por vezes absurdas, mas palavras são palavras nada mais. as coisas, os amores, as obras de arte, as cenas de filme enfim são o que são, e apesar da mania acadêmica de fazer discurso eu afirmo antes de mais nada: toda comparação é sobretudo uma grosseria, falemos menos e vivamos mais! 

deixo uma música que esses dias me tocou pra que se toquem também, é bom sentir o coração pulsar:

http://www.youtube.com/watch?v=dnjaevCMj_o